domingo, 11 de outubro de 2009

ARTIGO FREI BETTO

 
  EDUCAÇÃO E NEOLIBERALISMO

   Frei Betto

    Estamos todos imersos numa mudança de época. Essa é uma viagem sem volta, embora muitos insistam em colocar a cabeça para fora da janela do trem e fixar os olhos no que ficou para trás. A última vez que algo parecido ocorreu na história do Ocidente foi quando se passou do regime feudal, medieval, para o moderno. Deslocou-se do paradigma teocêntrico para o antropocêntrico; da cosmologia geocêntrica para a heliocêntrica; da fé à razão.
    Hoje, vivemos não apenas numa época de mudanças, como nossos avós. Somos contemporâneos de uma mudança de época. Estamos em trânsito da modernidade à pós-modernidade, da razão cartesiana à inteligência holística. E na paisagem circundante vemos em crise as quatro instituições modernas produtoras de sentido: família, escola, igreja e Estado.
    Na transição da modernidade à pós-modernidade, a hegemonia capitalista sobre o planeta substitui o liberalismo pelo neoliberalismo. A concorrência cede lugar aos oligopólios; as nações à globalização; a cultura ao entretenimento; o humanismo à mercantilização; a marginalidade à exclusão. Fragmenta-se o vitral e, agora, só se percebem os cacos. A fragmentação ocupa os espaços outrora reservados às sínteses cognitivas.

Ameaças à educação

    Nessa onda neoliberal que assola o planeta, a educação, tida até agora como um dever do Estado e um direito social, corre o risco de ser considerada, pela OMC, mera mercadoria. Como tal, acessível a quem por ela pode pagar, como qualquer outra mercadoria.
    O efeito mais nefasto do neoliberalismo nos processos pedagógicos é a desistorização do tempo. Os persas captaram o caráter histórico do tempo, cultura que nos foi legada pela tradição judaico-cristã. Toda a narrativa bíblica está impregnada de historicidade, dos seis dias da Criação ao conceito javista de um Deus que, num mundo politeísta, se apresenta com curriculum vitae: o Deus de Abraão, Isaac e Jacó.
    Francis Fukuyama, arauto do neoliberalismo, tenta nos convencer de que “a história acabou.” Tudo o que é sólido se desmancha no bar... como o gelo num coquetel. Resta nos adequar ao paradigma da pós-modernidade: o mercado. Voltamos à idéia grega de um tempo cíclico, o que induz as novas gerações à perda do horizonte histórico, da utopia, do idealismo, disseminando um niilismo necrófilo, pois quem não sonha com a utopia corre o risco de recorrer às drogas, já que o ser humano é movido a sonhos.
    A mercantilização da educação induz a um processo análogo ao dos processos produtivos e de serviço: a privatização. Sucateada a escola pública, resta a particular como recurso a quem dispõe de renda suficiente para custear seus estudos.
Para que serve a educação escolar? Para muitos estudantes, é o túnel pelo qual se tem acesso ao mercado de trabalho. A luz no fim do túnel é a capacitação profissional, um bom salário, uma identidade social, graças a conhecimentos e habilidades adquiridos nos bancos escolares.
Seria a escola mera estufa de adestramento para o mercado de trabalho? Como me disse um adolescente de 16 anos, “na academia eu malho o corpo; na escola, o cérebro”. De fato, essa “malhação” cerebral tem seus efeitos positivos. As diferenças de salários são menores em sociedades que apresentam melhor resultado educativo.
Porém, o caráter mercantilista faz a qualidade do ensino transferir-se da escola pública para a particular. A progressiva demissão do Estado frente a seus deveres sociais – e direitos da cidadania, como educação e saúde -, fruto amargo do neoliberalismo que, em nome do capital, apregoa a privatização do patrimônio público, permite que muitas escolas particulares funcionem como meras empresas que ofertam educação como mercadoria de luxo.
Educar deveria ser muito mais que propiciar ao educando conhecimentos e habilidades para que venha a obter melhores salários que seus pais e avós. Mais importante do que formar um profissional, é formar uma pessoa capaz de atuar como cidadã; inserir-se sem preconceitos nessa realidade multicultural; associar significados e construir sínteses cognitivas; superar a mera percepção da vida como fenômeno biológico para encará-la como fenômeno biográfico, processo histórico.
Outrora, a pedagogia não diferia muito do regime dos quartéis, e onde o aprendizado dependia do esforço memorial. Tratava-se de assimilar conhecimentos. Hoje, o aprendizado é um processo interativo e criativo. E o conhecimento é determinante no novo paradigma produtivo.
Não basta assimilar informações. É preciso saber selecioná-las, relacioná-las e fazê-las convergir para processos criativos. Deve a escola dotar o educando de capacidade para enfrentar os novos desafios, lidar com as múltiplas racionalidades vigentes, aprofundar seu espírito crítico. Enfim, saber converter informação em cultura e cultura em sentido de vida.
Uma boa pedagogia induz o educando a evoluir da memorização à compreensão, da assimilação de informações à seleção crítica, do mero aprendizado à criatividade. Instiga-o a analisar criticamente a realidade; conviver dialogicamente nesse mundo de pluralidade cultural; transformar idéias e sonhos em projetos sociais e políticos.
O mundo encolheu. Vivemos agora na aldeia global. Em tempo real, o que ocorre do outro lado do planeta entra em nossa casa através da janela eletrônica. Sente-se muito ameaçado quem não sabe relacionar conteúdos globais e realidades locais. Sua identidade cultural fica abalada frente ao rolo compressor da hegemonização televisiva da cultura de entretenimento como isca hipnótica de atração ao consumismo.
Educar é saber lidar com a diferença e o diferente. O educando que não se sente nem se sabe diferente corre o risco de ceder à massificação midiática.  Buscará na imagem desse espelho retorcido uma face que não é a sua e, no entanto, o fascina pela ilusão de que, ao negar as suas raízes, haverá de alcançar aquele outro ser que só existe em sua fantasia.
Um dos grandes desafios da educação é como incutir vivências comunitárias como expressão de singularidades, jamais de despersonalização. Esse situar-se no lugar do outro, procurar ver o mundo com olhos do outro, é o que provoca mudanças de lugares social e epistêmico, e funda as condições de convivência democrática. Em suma, verbalizando uma expressão em moda, é preciso aprender a desterritorializar-se para saber ressignificar os sentidos.

Novas tecnologias

    Numa dimensão holística, o desafio que se coloca à educação é superar o cartesianismo e abarcar todas a dimensões da vida do educando, razão e emoção, inteligência e corporalidade, sentimentos e estética. Despertar nele o senso crítico perante a realidade, bem como a capacidade, nesse mundo internáutico, de saber lidar com as múltiplas racionalidades vigentes.
    Um dos fatores mais influentes, hoje, no processo pedagógico é a TV, a janela eletrônica que nos permite observar o mundo em tempo real, assim como o computador. Segundo as regras do mercado, o objetivo dessas ferramentas não é propriamente formar cidadãos e contribuir para um civilização mais humanizada, e sim formar consumistas e favorecer a acumulação do capital em mãos privadas. Portanto, assim como a escola trabalha com textos, deve agora trabalhar também com imagens, ensinando ao aluno relacionar conteúdos globais e realidade locais.
À massificação midiática se apresenta o desafio de saber lidar com a diferença e o diferente. Incutir vivências comunitárias como expressão de singularidades, e não de despersonalização.
    Agoniza, felizmente, o modelo escolar baseado em programas centralizados e de longa vigência; o conceito europeizado de cultura; a unificação nacional/cultural através da educação. Agora, há que aprender a lidar com a diversidade cultural, o pluralismo de opiniões e crenças, a integração midiática.
    A educação não deveria ser reflexo da racionalidade sistêmica que apregoa a supremacia do capital sobre os recursos humanos e ambientais, e da propriedade privada sobre os direitos da comunidade. Cabe-lhe subverter a racionalidade de uma sociedade canibalizada pelo império do mercado.
    Há que buscar reduzir a contradição entre os paradigmas neoliberais vigentes na sociedade e o conteúdo escolar. Enquanto o sistema procurar multiplicar consumistas, a educação empenha-se em formar cidadãos. Para o primeiro, o indivíduo é tanto mais capaz quanto mais competitivo e centrado nos próprios interesses. Para a educação, trata-se de formar pessoas solidárias altruístas, generosas. O sistema é auto-referente e se apóia numa lógica implacável: a educação infunde o espírito de tolerância num mundo caracterizado pela diversidade cultural.

Impactos da globalização

    A globocolonização exerce impactos contraditórios nas culturas locais. De um lado, reforça relações de dominação, dissemina a hegemonia cultural e intensifica o mimetismo. Cria o retraimento das expressões artísticas e culturais à margem dos recursos midiáticos; corrói utopias e projetos a longo prazo; favorece o fundamentalismo como forma de compensar a  exclusão.
    Por outro lado, estimula o diálogo planetário, sinaliza a diversidade cultural, instiga a prática dos direitos humanos e da proteção  ambiental, faz com que saberes universais sejam relidos segundo singularidades locais.
    É preciso pôr fim à “simultaneidade sistêmica”. Nem todos os educandos têm a mesma capacidade de aprender as mesmas coisas. O que interessa ao aluno do interior do Amazonas certamente não é o que atrai o do centro de São Paulo.
Aos currículos transversais devem-se acrescentar os currículos regionais, adaptados à realidade dos alunos.
    Não há ferramenta mais apropriada para inserir as novas gerações nesse mundo globocolonizado e conflitivo do que a educação. Desde que a escola não considere cultura apenas um verniz de informações em arte e noções de estética. Cultura são ações humanas sobre a natureza e a história, visões de mundo, produções simbólicas, metarrelatos, dinâmicas de comunicação e interação.
    Uma escola humanizadora é a de alunos que, sujeitos do processo educativo, assimilam práticas de defesa de direitos humanos e ambientais, e se tornam agentes transformadores da realidade. Essa pedagogia subversiva – no sentido etimológico de inverter de baixo para cima - promove a autonomia do educando, vincula aprendizado e experiência, contextualiza o saber. Enfim, educa, não apenas para o vestibular ou a obtenção do diploma, mas para a vida.
    Num mundo tão desigual, no qual os mais requintados avanços tecnocientíficos convivem com seres humanos condenados à fome e à miséria, não há opção de neutralidade para a educação. Portanto, a questão é escolher conteúdos pertinentes aos valores éticos. Pode-se ensinar História destacando os triunfos militares de um país sobre outro ou a cooperação entre nações, os intercâmbios culturais, os gestos de solidariedade e amizade.
    Educar para a vida é tornar o educando capaz de lidar com sexo, drogas e violência; reagir à insegurança urbana e à incerteza diante do futuro; vivenciar valores éticos; desenvolver espírito crítico para interagir com a mídia; reconhecer a importância da política como atividade privilegiada de realização do bem comum. A educação multicultural é tanto mais importante quanto mais temos sociedades complexas quanto à diferenciação de identidades, interesses, aspirações e demandas. É preciso estar aberto às distintas mundividências, sempre com espírito crítico.
    Os rivais da escola são a TV e o uso indiscriminado do computador como mero recurso de entretenimento individual. A TV deslocaliza saberes, mescla-os, utiliza-os contínua e convulsivamente em prol do entretenimento, subtraindo-os do contexto em que brotam. Ver pessoas famosas dançar flamengo num programa dominical não é suficiente para conhecer-lhe a origem mourisca e a influência cigana.
    A TV quebra a fronteira entre o real e o imaginário; saber e informação; arte e ciência. Frente ao “êxtase comunicacional” (Baudrillard) é preciso educar o espírito crítico e seletivo. Aprender a ver o mundo é tão importante quanto aprender a ler e a escutar. É preciso saber ler, não apenas letras, mas também imagens, sons, cores e formas.
    As novas gerações vão da oralidade à visualidade sem passar pela escrita. Daí a dificuldade com a hermenêutica dos textos e o raciocínio abstrato. Ver para crer, eis o princípio de São Tomé levado às raias da penúria intelectual. O que, a longo prazo, pode induzir um povo a confundir densidade cultural com densidade tecnológica, relevando esta em detrimento daquela.
    Sem se afirmar como espaço de subversão desses paradigmas do mercado, cada vez mais concentrador e excludente, a escola estará fadada a se tornar mero apêndice de reprodução de cordeiros de uma sociedade-rebanho que faz de shopping centers áreas de lazer.
     Unidade dos educadores, diversidade da educação. Nem todos os alunos tem capacidade e interesse em aprender as mesmas coisas. A escolaridade em São Paulo não pode ser a mesma na região amazônica. Há que lutar pela autonomia do educando, associar aprendizado e vivência, contextualizar o saber. Não há neutralidade para a educação neste mundo desigual.
    Nossos estudantes devem saber lidar com temas candentes como sexualidade e afetividade, drogas e violência, degradação ambiental e fetichismo do mercado. Só assim poderão vivenciar valores éticos, ter visão crítica perante a mídia, aprender a ler, não só letras, mas também sons, core, imagens. Há que evitar que passem da oralidade à visualidade sem passar pela escrita, pois correriam o risco de perder a capacidade hermenêutica e o raciocínio abstrato.
    Enfim, a escola deve ser um espaço de formação política, ecológica e espiritual; um laboratório estratégico de projetos sociais.

Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de “Essa escola chamada vida” (Ática), entre outros livros.

Nenhum comentário:

Postar um comentário