TEXTOS DO AGIR, LER, PENSAR E CONSTRUIR NOVO AGIR SOCIOAMBIENTAL 2
A Importância do ato de ler*
Rara tem sido a vez, ao longo de tantos anos de prática pedagógica, por isso política,
em que me tenho permitido a tarefa de abrir, de inaugurar ou de encerrar encontros
ou congressos.
Aceitei fazê-la agora, da maneira porém menos formal possível. Aceitei vir aqui para
falar um pouco da importância do ato de ler. Me parece indispensável, ao procurar falar de tal importância, dizer algo do momento mesmo em que me preparava para aqui estar hoje; dizer algo do processo em que me inseri enquanto ia escrevendo este texto que agora leio, processo que envolvia uma compreensão critica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra
escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto. Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado - e até gostosamente - a "reler" momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha
mocidade, em que a compreensão critica da importância do ato de ler se veio em mim
constituindo.
Ao ir escrevendo este texto, ia "tomando distância” dos diferentes momentos em que o
ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do
mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem
sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.
A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o
mundo particular em que me movia - e até onde não sou traído pela memória -, me é
absoluta-mente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e revivo,
no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a
palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores,
algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós - à sua sombra
brincava e em seus galhos mais dóceis à minha alt ura eu me experimentava em riscos
menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.
A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço - o sítio das avencas
de minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro
mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele
mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso
mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os "textos", as "palavras”, as
"letras” daquele contexto - em cuja percepção rio experimentava e, quanto mais o
fazia, mais aumentava a capacidade de perceber - se encarnavam numa série de
coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com
eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.
Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos
pássaros - o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do
sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam
tempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia:
inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele
contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas núvens do céu, nas suas
cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das
flores - das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na
tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da
manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da
mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A
relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa
manipulação e o seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo
fazer, aprendi a significação da ação de amolegar.
Daquele contexto faziam parte igualmente os animais: os gatos da família, a sua
maneira manhosa de enroscar-se nas pernas da gente, o seu miado, de súplica ou de
raiva; Jolí, o velho cachorro negro de meu pai, o seu mau humor toda vez que um dos
gatos incautamente se aproximava demasiado do lugar em que se achava comendo e
que era seu - "estado de espírito”, o de Joli, em tais momentos, completamente
diferente do de quando quase desportivamente perseguia, acuava e matava um dos
muitos timbus responsáveis pelo sumiço de gordas galinhas de minha avó.
Daquele contexto - o do meu mundo imediato - fazia parte, por outro lado, o universo
da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus
receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu
mundo imediato e de cuja existência eu nós podia sequer suspeitar.
No esforço de re-tomar a infância distante, a que já me referi, buscando a
compreensão do meu ato de ler o mundo particular em que me movia, permitam-me
repetir, re-crio, re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em
que ainda não lia a palavra. E algo que me parece importante, no contexto geral de
que venho falando, emerge agora insinuando a sua presença no corpo destas
reflexões. Me refiro a meu medo das almas penadas cuja presença entre nos era
permanente objeto das conversas dos mais velhos, no tempo de minha infância. As
almas penadas precisavam da escuridão ou da semi-escuridão para aparecer, das
formas mais diversas - gemendo a dor de suas culpas, gargalhando zombeteiramente,
pedindo orações ou indicando esconderijos de botijas. Ora, até possivelmente os meus
sete anos, o bairro do Recite onde nasci era iluminado por lampiões que se perfilavam,
com certa dignidade, pelas ruas. Lampiões elegantes que, ao cair da noite, se “davam”
à vara mágica de seus acendedores. Eu costumava acompanhar, do portão de minha
casa, de longe, a figura magra do “acendedor de lampiões" de minha rua, que vinha
vindo, andar ritmado, vara iluminadora ao ombro, de lampião a lampião, dando luz à
rua. Uma luz precária, mais precária do que a que tínhamos dentro de casa. Uma luz
muito mais tomada pelas sombras do que iluminadora delas.
Não havia melhor clima para peraltices das almas do que aquele. Me lembro das noites
em que, envolvido no meu re medo, esperava que o tempo passasse, que a noite se
fosse, que a madrugada semiclareada viesse trazendo com ela o canto dos passarinhos
"manhecedores".
Os meus temores noturnos terminaram por me aguçar, manhãs abertas, a percepção
de um sem-número de ruídos que se perdiam na claridade e na algazarra dos dias e
que eram misteriosamente sublinhados no silêncio fundo das noites. Na medida, porém, em que me fui tomando íntimo do meu mundo, em que melhor o percebia e o entendia na "leitura" que dele ia fazendo, os meus temores iam diminuindo. Mas, é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas. A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em
certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato, sem
que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de
encantadoramente misterioso, que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra.
A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era
algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do
quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não
do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-neqro; gravetos, o meu giz.
Por isso é que, ao chegar à escolinha particular de Eunice Vasconcelos, cujo
desaparecimento recente me feriu e me doeu, e a quem presto agora uma
homenagem sentia, já estava alfabetizada. Eunice continuou e aprofundou o trabalho
de meus pais. Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou
uma ruptura com a "leitura" do mundo. Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da
“palavramundo”.
* Trabalho apresentado na abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, em novembro
de 1981.
FREIRE, Paulo.
A Importância do Ato de Ler: em três artigos que se completam. 22 ed. São Paulo: Cortez, 1988. 80
Quem foi Paulo Freire:
Paulo Reglus Neves Freire (
Recife,
19 de setembro de
1921 —
São Paulo,
2 de maio de
1997) foi um
educador e
filósofo brasileiro. Destacou-se por seu trabalho na área da
educação popular, voltada tanto para a escolarização como para a formação da
consciência. Autor de “Pedagogia do Oprimido”, um método de alfabetização dialético, se diferenciou do "vanguardismo" dos intelectuais de esquerda tradicionais e sempre defendeu o diálogo com as pessoas simples, não só como método, mas como um modo de ser realmente democrático. É considerado um dos pensadores mais notáveis na
história da
pedagogia mundial
[1], tendo influenciado o movimento chamado
pedagogia crítica. (Wikipedia)